terça-feira, julho 10

um texto...


"O Pó dos Dias
A vida levanta pó que se farta. É o trabalho, os amigos, os amores insatisfeitos, a rotina que nos engole. São as crianças e o casamento, os pais e os irmãos, os sonhos, e mais até. Fica no ar, cola-se a nós, respiramo-lo com parcimónia, e entranha-se (bem fundo)  como uma sereia que encanta e nos adormece de sossego.
O pó dos dias não irrita as mucosas: inflama o nosso olhar e aloja-se, como um vírus que aí encontra um hospedeiro, no modo como deixamos de escutar com o coração e nos contentamos em ouvir. Mesmo que, para fugirmos dele, como uma melga que se insinua nos ouvidos, levantemos mais pó, e mais pó, evitando que ele se assente, devagar, e nos puxe – enfim – para pensar.
O pó dos dias leva a que imaginemos que a vida corre por si. Sem que precise de um mestre de costa ou de um homem ao leme. Conduz-nos para veredas íngremes e para couraças escorregadias. Faz das pessoas vultos, e parece tornar opaco o nosso querer. Ah, e obriga-nos a lamentar, quase para sempre, o quanto desejávamos transformar o pó dos dias numa manhã de sol, se pudéssemos… é claro.
Nem sempre querer é poder. Muitas vezes, quer-se e não se pode. A diferença está entre querer... e acreditar que se pode.
Sempre que acreditamos, os milagres acontecem. E aquilo que falta a quem quer (e não pode) é um “vai que eu olho por ti”. Alguém que nos tenha dado suprema bondade de acreditar naquilo em que acreditamos, e de querer o que nós queremos, que transforma o querer em poder.
Em verdade, o truque esconde-se neste pequeno pormenor: quando se quer, ninguém consegue ir  - mesmo que vá pelos seus sonhos – contra todos os que, afirmando que gostam de nós, jamais nos dizem: “vai, que eu serei a tua âncora”. Ou, “vai, que eu olho por ti”. (Por vezes, dizem mesmo, embrulhado num silêncio cobarde: “se fores, deixo de olhar para ti”).
Todos nós precisamos de uma âncora para que os milagres aconteçam e, assim, se vença o pó dos dias. E talvez seja isso o que a vida tem de mais desconcertante:
Não são os ventos nem as marés, só as âncoras… que nos permitem navegar."
* Adorei esse texto, ele faz parte do livro "Chega-te a mim e deixa-te ficar" do escritor e psicólogo português Eduardo Sá. Obviamente, o texto está escrito em português de Portugal, portanto, eu esclareço que "melga" é o mesmo que "muriçoca" ou "pernilongo", e que "cobarde" é o que conhecemos como "covarde" mesmo.

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