Pareço um sapo cego dando uma linguada
no ar, não vejo o inseto, mas sei que ele está lá. Molho o ar na espera
de lamber sua coxa, a pele com menos pêlos atrás do seu joelho. Lamber
sua virilha, sentir seu cheiro, brincar com seu umbigo perfeito e
boquiaberto por causa da barriguinha. Quem
sabe descobrir alguma sujeirinha ali no umbigo, um resto de algodão, um
resto de salgadinho vagabundo, um resto de prazer. Eu te amava depois do
banho, eu te amava indo trabalhar sujo de mim, eu te amava humano e eu
te amava, sobretudo, alienígena e com sono de sentir a vida.
Sinto saudades de respirar o mais
profundo possível, como já escrevi antes, perto de sua nuca. E descobrir
novidades sem nome e sem solução. Sinto saudades de me perder tentando
entender de que tanto você sorria, de que tanto você brilhava, de que
tanto você se perdia e se escondia.
Peço licença ao meu ódio tão feio e tão
infinito para te amar só mais uma vez. Quero te amar sozinha aqui, na
minha casa nova, em minha quase nova vida. Quero esquecer todo o nada
que você representa e dar contorno aos desenhos que não saem da minha
cabeça. Nunca entendi seu coração, nunca entendi seus olhos, nunca
entendi suas pernas, mas só por hoje queria poder lamber sua fumaça para
que ela permanecesse mais, pesasse mais.
É libertador esquecer meu desejo de
vingança, a vontade que tenho de explodir sua vida, o vício que tenho de
passar mil vezes por dia, em pensamento, ao seu lado. E pisar em cima
da sua inexistência e liberdade. Chega disso, só pelo tempo em que
durarem estas letras e a música que coloco para reviver você, vou te
amar mais esta vez. Vou me enganar mais uma vez, fingindo que te amo às
vezes, como se não te amasse sempre.
Eu nunca aceitei a simplicidade do
sentimento. Eu sempre quis entender de onde vinha tanta loucura, tanta
emoção. Eu nunca respeitei sua banalidade, nunca entendi como podia ser
tão escrava de uma vida que não me dizia nada, não me aquietava em nada,
não me preenchia, não me planejava, não me findava.
Nós éramos sem começo, sem meio, sem
fim, sem solução, sem motivo. Ainda assim, há meses, há séculos que se
arrastam deixando tudo adulto demais, morto demais, simples demais,
exato e triste demais, eu sinto sua falta com se tivesse perdido meu
braço direito.
Esse amor periférico, ainda que não me
deixe descoberto o peito, me descobre os buracos. Não são de suas
palavras que sinto falta. Não é da sua voz meio burralda e do seu bocejo
alto demais para me calar e me implorar menos sentimentos. Não é,
tampouco, do seu abraço. Sua presença sempre deixou lacunas e friagens
que zumbiam macabramente entre tantas frestas sem encaixe.
Não sinto saudades do seu amor, ele
nunca existiu, nem sei que cara ele teria, nem sei que cheiro ele teria.
Não existe morte para o que nunca nasceu.
Sinto falta mesmo, para maior desespero
e inconformismo do meu coração metido a profundo, de lamber suas coxas,
a pele mais lisa atrás dos joelhos. Lamber sua virilha, sentir seu
cheiro, brincar com seu umbigo, respirar sua nuca, engolir sua
simplicidade, me rasgar com sua banalidade, calar sua estupidez,
respirar seu ronco, tocar sua inexistência, espirrar com sua fumaça.
Sinto falta da perdição involuntária
que era congelar na sua presença tão insignificante. Era a vida se
mostrando mais poderosa do que eu e minhas listas de certo e errado. Era
a natureza me provando ser mais óbvia do que todas as minhas crenças.
Eu não mandava no que sentia por você, eu não aceitava, não queria e,
ainda assim, era inundada diariamente por uma vida trezentas vezes maior
que a minha. Eu te amava por causa da vida e não por minha causa. E
isso era lindo. Você era lindo.
Simplesmente isso. Você, uma pessoa sem
poesia, sem dor, sem assunto para agüentar o silêncio, sem alma para
agüentar apenas a nossa presença, sem tempo para que o tempo parasse.
Você, a pessoa que eu ainda vejo passando no corredor e me levando
embora, responsável por todas as minhas manhãs sem esperança, noites sem
aconchego, tardes sem beleza.
Sinto falta da raiva, disfarçada em
desprezo, que você tinha em nunca me fazer feliz, sinto falta da certeza
de que tudo estava errado, mas do corpo sem forças para fugir, sinto
falta do cheiro de morte que carregávamos enquanto ainda era possível
velar seu corpo ao meu lado, sinto falta de quando a imensa distância
ainda me deixava te ver do outro lado da rua, passando apressado com
seus ombros perfeitos. Sinto falta de lembrar que você me via tanto, que
preferia fazer que não via nada. Sinta falta da sua tristeza,
disfarçada em arrogância, de não dar conta, de não ter nem amor, nem
vida, nem saco, nem músculos, nem medo, nem alma suficientes para me
reter.
Prometi não tentar entender e apenas
sentir, sentir mais uma vez, sentir apenas a falta de lamber suas coxas,
a pele lisa, o joelho, a nuca, o umbigo, a virilha, as sujeiras. Sinto
falta do mistério que era amar a última pessoa do mundo que eu amaria.

Tati Bernardi é uma daquelas escritoras que parecem falar com a
gente. Difícil ler um texto dela e não se identificar – nem que seja com
uma situação ou outra, com uma lamentação, com um desabafo, com aquele
pedacinho de vida que deixa nossos dias melhores, com sutilezas que a
gente sente, mas esquece que notar. E, de repente, sem perceber, você
está vibrando ou morrendo de compaixão por ela, com vontade de pegar na
mão ou mandar email dizendo: “Eu sei exatamente o que você está
sentindo.” E pra despertar tantos sentimentos em corações alheios e
distantes, tem que ser muito boa no que faz.
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